segunda-feira, 2 de maio de 2011

A COMISSÃO PROCESSANTE ESPECIAL E A LEI 10.948/2001

A COMISSÃO PROCESSANTE ESPECIAL E A LEI 10.948/2001

Por Ricardo Augusto Yamasaki[1] e Haroldo Jun Tani[2]

I. INTRÓITO

O direito à dignidade humana implica o respeito às diferenças, quaisquer sejam suas naturezas. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu segundo artigo, inciso primeiro dispõe: “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. A citação quase exaustiva de um conjunto de condições contingentes à humanidade refuta a existência de uma pretensa condição universal do ser humano sob a qual se assentaria sua dignidade e todos seus direitos inalienáveis. Não é possível ignorar que diferenças entre os seres humanos provoquem tratamento desigual na garantia de direitos, do contrário, a interdição da distinção pelas diferentes condições sociais não faria o mínimo sentido.

No segundo artigo, a Declaração sai da esfera propriamente jurídica para penetrar na esfera social. O mundo de pretensa igualdade entre os seres humanos, expresso no século 18, valia tão-somente a um grupo social específico: homens, de alta condição social, brancos e heterossexuais. A “descoberta” de que havia diferenças das mais variadas diferenças, ainda no século 19, e de que a igualdade não era universal, mas válida para um universo de pessoas muito específico, trouxe uma reflexão sobre a possibilidade da garantia da dignidade humana face às diferenças existentes entre os seres humanos, as quais, possivelmente, implicariam desigualdades no tratamento de direitos inalienáveis.

Não há seres humanos “em si” ou um conceito de humanidade que pudesse incluir todos os seres humanos, sob o qual se fundamente a dignidade humana. Segundo a filósofa Hannah Arendt: “O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou-se no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano”. [3] Diferenças entre os seres humanos devem ser consideradas nos sistemas de proteção aos direitos porque não há seres humanos abstratos, destituídos de qualidades; ao contrário, existem características contingentes a todos os seres humanos, como cor, etnia, gênero, origem nacional, entre outras que, se não consideradas, podem resultar na desigualdade no tratamento dos cidadãos quanto à garantia de seus direitos fundamentais.

Assim, justificam-se todos os tipos de legislação específicos às mulheres, crianças e adolescentes, idosos, minorias étnicas e raciais, entre outros grupos historicamente discriminados, para que suas características específicas não impliquem a não salvaguarda de seus direitos fundamentais. Segundo o jurista Norberto Bobbio: “(...) os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais.” [4].Os instrumentos de proteção legal específicos a grupos socialmente marginalizados são requisitos para a concretização da Declaração Universal dos Direitos Humanos; sem eles, os direitos aos quais se refere o documento de 1948 tornam-se referentes ao ser humano “em si”, destituído de qualidades, abstrato. Em outras palavras, eles não diriam respeito a ser humano nenhum.

Os Princípios de Yogyakarta, criados em outubro de 2006, preconizam aos Estados Nacionais e aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos o estabelecimento de instrumentos específicos para a garantia de direitos fundamentais às minorias de identidade de gênero e de orientação sexual. Como outros tipos de legislação específicos a grupos historicamente marginalizados, eles reconhecem diferenças dos seres humanos em uma área específica da vida, a sexualidade. Historicamente, as minorias que tinham orientação sexual diferente da orientação pelo sexo oposto e/ou identidade de gênero diferente da do sexo biológico tiveram seus direitos básicos negados. Daí o primeiro dos Princípios de Yogyakarta referir-se justamente à garantia de direitos fundamentais: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos”.

Os vinte e nove Princípios descrevem amplamente as situações em que as minorias de orientação sexual e de identidade de gênero são passíveis de sofrer discriminação e consequente privação de seus direitos fundamentais, desde o direito de ir e vir ao direito de participação na vida cultural, passando pelo direito à saúde, educação e segurança pessoal. O Vigésimo Nono Princípio afirma a necessidade de os Estados nacionais criarem instrumentos institucionais de coerção aos praticantes de atos discriminatórios: “Toda pessoa cujos direitos humanos sejam violados, inclusive direitos referidos nestes Princípios, tem o direito de responsabilizar por suas ações, de maneira proporcional à seriedade da violação, aquelas pessoas que, direta ou indiretamente, praticaram aquela violação, sejam ou não funcionários/as públicos/as. Não deve haver impunidade para pessoas que violam os direitos humanos relacionadas à orientação sexual ou identidade de gênero”. Assim, os Princípios de Yogyakarta atentam para a necessidade de meios de coerção ao indivíduo praticante de ato discriminatório, não se limitando à simples proclamação de direitos. È necessário que os Estados se comprometam ao combate à discriminação por identidade de gênero e por orientação pelo seu atributo mais classicamente atribuído: o monopólio legítimo sobre os meios de coerção.

O Vigésimo Nono Princípio inclui a via administrativa como mecanismo previsto de coerção: (Os Estados deverão): Implantar procedimentos criminais, civis, administrativos e outros procedimentos, que sejam apropriados, acessíveis e eficazes, assim como mecanismos de monitoramento, para assegurar que as pessoas e instituições que violam os direitos humanos relacionados à orientação sexual ou identidade de gênero sejam responsabilizadas (grifo nosso).

II. O ESTADO DE SÃO PAULO

Sob este enfoque, no dia 07 de novembro de 2001, no Estado de São Paulo de autoria do deputado Renato Simões, é publicada a Lei Estadual 10.948. Trata-se de uma lei administrativa cujo intento é punir os praticantes de atos discriminatórios por identidade de gênero e orientação sexual. Até então, não havia, no âmbito do Estado de São Paulo, legislação que resguardasse as vítimas de homofobia por meio de dispositivos de coerção. A discriminação por identidade de gênero e por orientação não é citada textualmente pela Constituição do Estado ou pela Constituição Federal, dificultando a aplicação de leis civis ou penais que protegem a dignidade do cidadão contra os atos de discriminação. Em 05 de janeiro de 2001, no âmbito da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, é criada a Comissão Processante Especial-CPE, com o objetivo de instaurar, gerir, apurar e julgar os processos da Lei 10.948. Importante ressaltar o ineditismo da Lei e da CPE, ambos anteriores mesmo à Yogyakarta, que tornaram o Estado de São Paulo o primeiro dos Estados brasileiros a disporem de legislação de proteção das vítimas de homofobia.

A Comissão Processante Especial –CPE tornou possível a aplicação da Lei Estadual 10.948/01, primeiro instrumento de defesa das vítimas de discriminação por identidade de gênero e orientação sexual. Junto à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância e a Coordenação de Políticas Públicas para a Diversidade Sexual, a CPE confere a possibilidade da efetividade da legislação específica de proteção às minorias sexuais. Sua criação, conforme preconizado pelo Vigésimo Nono Princípio de Yogyakarta, tornou, efetivamente, os atos de discriminação contra esse grupo historicamente marginalizado em atos de violação contra o Estado de São Paulo.

A criação da CPE tornou o Estado de São Paulo pioneiro na institucionalização de uma lei específica de defesa das minorias sexuais; tal institucionalização ainda está para ocorrer nos âmbitos nacional, internacional e na maior parte dos municípios do País. Sua consolidação como instituição no combate à homofobia depende de uma melhor divulgação da Lei, de um aprimoramento dos procedimentos processuais e, sobretudo, da apropriação da Lei pela sociedade paulista em geral, e da comunidade LGBT em particular.

Contraste com o pioneirismo da Lei Estadual 10.948/01 e a CPE é o baixo número de processos, que contam, hoje, pouco mais de cem. Há grande desconhecimento da Lei e de seus trâmites processuais. Por tratar-se de algo inusitado para a tradição jurídica e jurisprudencial no Brasil, o aspecto processual da Lei não exclui polêmicas entre os especialistas. Mais importante, a homofobia generalizada[5] constitui um forte fator de impedimento de acesso à Lei, uma vez que o denunciante, não raro, sofre a dissuasão da pessoa que comete o ato de discriminação, a qual conta, muitas vezes, com respaldo social. Ainda que se pese a função do Estado de divulgar a Lei 10.948/01, deve-se considerar que a discriminação homofóbica e os instrumentos legais que existem para combatê-la são pouca ou escassamente retratados pela grande mídia.

III. EM CASO DE DISCRIMINAÇÃO COMO PROCEDER

O cidadão ou cidadã homossexual, bissexual, travesti, trangênero ou transexual que for vítima de discriminação poderá apresentar sua denúncia pessoalmente ou por carta, telegrama, e-mail ou fac-símile à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, sem a necessidade da presença de um advogado. Neste caso, a Defensoria Pública assiste às pessoas que não possuem suporte jurídico.

A denúncia deverá ser fundamentada com descrição do fato discriminatório, seguida da identificação de quem faz a denúncia. O sigilo do denunciante é garantido pela lei.

Recebida a denúncia, a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania dará inicio ao processo administrativo para apuração, julgamento e eventual determinação de sanções. Depois de encaminhar a denúncia, a Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania, por meio de sua Comissão Processante Especial (CPE), envia uma notificação pelo correio ao Denunciado, para que ele se manifeste sobre os fatos. O processo é gratuito.

Pode ser processado e receber sanção todo e qualquer cidadão, inclusive o detentor de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa pública ou privada.

Quem discrimina pode receber sanção por meio de advertência, multa ou, em caso de estabelecimento comercial, também suspensão ou cassação de licença de funcionamento.

O servidor público receberá sanção de acordo com itens do estatuto dos funcionários públicos.

IV. DADOS[6]




V. O PERFIL DO DENUNCIANTE


VI. PERFIL DO DENUNCIADO




VII. PERFIL DOS PROCESSOS




VIII. DAS SANÇÕES APLICADAS



[1] Advogado. Dirigente da Assessoria de Defesa da Cidadania da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania. É Vice-presidente da Comissão Processante Especial.

[2] Cientista social. Executivo Público da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania.

[3] ARENDT, Hannah, As origens do totalitarismo, p. 333, Cia das Letras, 1998.

[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p.30 Campus, 1992.

[5] Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, publicada em 2008, aponta que 99% da população entrevistada têm, explicita ou veladamente, algum grau de preconceito contra as minorias sexuais.

[6] Atualizados até 17 de fevereiro de 2010.

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